Reformatório Krenak | fragmentos de uma memória subterrânea
2019-2024
1969. Integração.
As comunidades indígenas habitavam terras estratégicas, destinadas à construção de estradas, ferrovias e usinas hidrelétricas — um obstáculo para os planos do governo brasileiro, uma barreira substancial ao "progresso". A solução? Confinamento forçado e a criação do Reformatório Krenak — uma prisão exclusiva para povos indígenas e uma das atrocidades mais graves cometidas pelos governantes do país durante o sangrento e brutal período da ditadura militar, que governou o Brasil de 1964 a 1985.
O Reformatório Krenak funcionava como um centro correcional para todos os povos indígenas considerados problemáticos pelo governo. Sem juízes. Sem direito à defesa. A prisão foi erguida na cidade de Resplendor, Minas Gerais, território ocupado pelo grupo étnico Krenak. Ao longo do tempo, indígenas de várias etnias de todo o país foram forçadamente deslocados para a região, não apenas como prisioneiros, mas também como indivíduos traumatizados em busca de familiares desaparecidos.
Proibidos de falar sua própria língua. Proibidos de realizar seus rituais. Proibidos de praticar qualquer atividade relacionada à sua cultura. O motivo? Simplesmente existir. E ser o povo que possui terras cobiçadas.
A situação piorou com a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN), uma alternativa do governo para resolver os problemas de relacionamento entre soldados e indígenas. Essa guarda era composta exclusivamente por indígenas forçados a deixar suas terras, treinados em táticas de combate e até em tortura para controlar os prisioneiros. Mais uma vez, o uso arbitrário do poder, o abuso em todas as esferas.
Em 1972, outro golpe. Fazendeiros locais demonstraram interesse nas terras onde a prisão estava localizada, o que levou o comando militar a transferir toda a população de Resplendor para a cidade de Carmésia, também em Minas. Para transportar à força todos os indígenas, foram utilizados vagões de carga fechados, e os mais resistentes foram algemados.
Remoções involuntárias sob a mira de armas. Internamentos análogos a campos de concentração. Trabalho forçado. Exílio. Violência sexual. Degradação social das etnias. Destruição física e cultural. Tortura e violências de todas as formas. O horror foi tão intenso nessa tentativa de exterminar a cultura dos povos originários que o episódio foi comparado aos piores crimes contra a humanidade na história. Esses três episódios constituem graves violações dos direitos humanos. O Reformatório Krenak é visto como uma aberração jurídica — uma ideia concebida unicamente para cometer etnocídio.
Somente no final dos anos 1980, a prisão foi desativada, e o povo Krenak pôde retornar às suas terras em Resplendor, onde hoje restam as ruínas da antiga prisão. Outros, sem para onde ir, permaneceram em Carmésia. Muitos membros da GRIN, pertencentes a etnia Maxacali, buscaram abrigo em novas terras, uma delas na cidade de Ladainha, no estado de Minas Gerais.
2019. Integração.
“Nosso projeto para os indígenas é fazê-los iguais a nós.”
Citação do ex-presidente Jair Bolsonaro.
A prisão ainda permanece de pé, agora em ruínas, assim como o povo. O governo militar retornou.
O Brasil é um país construído sobre histórias não contadas. Este projeto explora as consequências de um episódio ocorrido durante a ditadura militar de 1964. Uma parte significativa da sociedade brasileira enxerga esse período como mais brando em comparação com outros países da América Latina. Nossa memória coletiva foi amplamente moldada pela falta de conhecimento sobre fatos ocultos, documentos destruídos e a manipulação da história do país.
Iniciado em 2019, o projeto busca transcender o episódio factual, revelando não apenas as memórias dos sobreviventes de uma série de atrocidades, mas também inspirando a busca pela identidade de uma nova geração que precisa viver, literalmente, entre as ruínas. A intenção é explorar os aspectos psicológicos daqueles que foram forçados a permanecer em um lugar marcado por traumas do passado, tentando encontrar um sentido de pertencimento em um mundo que não é deles, mas que é o único que conheceram. O projeto visa revelar as paisagens, objetos, paredes e janelas que se tornaram símbolos daqueles que tiveram a coragem de resistir.
Desde o seu início, o projeto foi concebido para fomentar o diálogo com a sociedade, pois a história precisa ser revelada. Alguns conceitos inspiraram o formato proposto. O primeiro é o de “memória subterrânea” de Michael Pollak, um sociólogo austríaco que definiu a memória subterrânea em oposição à “memória oficial” como parte da cultura de populações marginalizadas, excluídas e oprimidas. Assim, embora simbolicamente, o projeto não pretende ser apenas um documento histórico, mas uma coleção de fragmentos de memória.
Na abordagem visual, foi criada uma nuvem de fragmentos com fotografias simbólicas e iconográficas. Esta tentativa visa expressar as diferentes camadas da história que não seguem uma linearidade e contêm momentos significativos que navegam entre realidade e metáfora. As cores se misturam com o passado em preto e branco. As nuvens estão divididas em capítulos, guiadas em sua construção por algumas palavras de referência cruciais. Na primeira nuvem, falamos sobre silêncio e vestígios; na segunda, sobre esquecimento, obliteração, estricção e encarceramento; e, finalmente, na terceira, sobre desconforto e ressignificação.
Em cada uma das nuvens, minhas imagens se misturam com imagens de arquivo, com a intenção de criar um conflito entre história e memória. Sigo o conceito de Pierre Nora, um historiador francês, que enfatiza os contrastes. Segundo ele, a memória tem raízes em elementos concretos como o espaço, o gesto, a imagem e o objeto. Ela não é constante, mas mutável, dependendo do interlocutor. Por outro lado, a história é sempre uma reconstrução problemática e incompleta do que já não existe. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história é uma representação do passado. A história busca retratá-los apenas como vítimas, mas a memória os mostra como sobreviventes.